sábado, 8 de outubro de 2011

Os Géneros Galego-Portugueses

«O nosso lirismo medieval oferece dois aspectos: estranho e autóctone. A cantiga de amor, forma culta e cortês, nasce do contacto dos nossos trovadores com a poesia provençal. A cantiga de amigo, de molde paralelístico  e inspiração fluente, é fundamentalmente tradicional. Mas as duas interpenetram-se e fecundam-se: há ressaibos paralelísticos nalgumas cantigas de amor, cortesia e requinte nas de amigo. O labor sábio e a experiência psicológica da arte trovadoresca enriqueciam naturalmente o género mais simples, que era o nosso. O prestígio estrangeiro começava por desnaturar a inspiração dos poetas nacionais que, como Martim Soares, desdenham da poesia de vilãos; mas, passado o entusiasmo da revolução e o aprendizado, a espontaneidade impunha-se. E em meados do século XIII a poesia galego-portuguesa desenha as suas feições inconfundíveis. A mulher é o seu objecto e um dos seus maiores agentes. Nas festas de Santiago de Compostela, centro de peregrinações religiosas que traziam de toda a România Ocidental, através do caminho francês, os romeiros jacobitas de cabaça no bordão e vieira no chapéu, as mulheres cantavam composições amatórias que a Igreja repelia ou policiava. As soldadeiras batiam adufe e castanholas, enquanto os jograis tocavam cítola. A própria condição da mulher recatada modificou-se com as repetidas ausências do homem no fossado, no ferido e nos serviços pessoais do Rei. As suas responsabilidades familiares aumentavam. A vida doméstica e dos campos gerava uma poesia íntima, feita da saudade dos ausentes, do recato das raparigas vigiadas pelas mães, dos desabafos e complacências das amigas e das vizinhas. É um lirismo burguês, insinuante, espalhado por segreis ou cavaleiros pobres, muito diferente da poesia subtil e aristocrática da Provença. A sua antiguidade transparece em arcaísmos de linguagem conservados no início da cantiga, que era em geral um tema tradicional que o poeta desenvolvia em versos encadeados.
Embora o foco de irradiação do lirismo galego-português fosse a Galiza, o culto de Santiago é menos representado que o dos santos locais de Riba-Minho: Santa Maria de Leiras, do Lago, de Leça, S. Servando, S. Leuter, S. Simon, Santa Cecília, S. Clemenço do Mar. Estes pequenos santuários tornavam-se centros de alusão poética; a cantiga de romaria fazia-se gracejo e coita de amor.
Tecnicamente, a cantiga de amigo - de que a de romaria ficou como simples variedade - caracteriza-se pela repetição de um motivo fundamental em versos paralelos, processo incisivo e simples, próprio das necessidades elementares do ritmo popular, periódico e dançado. A cantiga de vilãos seria cantada ao som do adufe. A liturgia fixaria a técnica responsória. Nos salmos, um coro cantava um versículo, outro cantava o versículo seguinte, e ambos, com todo o povo, atacavam a antífona como se fosse um refrão. O processo paralelístico da poesia popular ainda hoje é patente na muiñeira galega e na cantiga retornada da região de Moncorvo. Os trovadores cultos aperfeiçoaram este processo, chamado leixa-pren, iniciando cada estrofe com o último verso da anterior.
Apesar do fundo tradicional da nossa poesia trovadoresca, a cultura francesa, bem como a provençal, foi decisiva para o seu enriquecimento.
Muito antes da vinda de clérigos e cavaleiros franceses com D. Henrique e D. Raimundo havia sinais de influência transpirenaica no Noroeste da Península. O camino francés conduzia os romeiros a Santiago. Nas ermidas do Noroeste queimava-se cera de Paris. Celebravam-se na Galiza os feitos dos Doze Pares; Roldão era tido como santo; havia sufrágios anuais em Compostela por alma de Carlos Magno; importava-se a letra carolíngia; o rito galicano influía no culto católico. No século IX há portugueses que se chamam Pepinos, Raimons, Carlons. No século X circula dinheiro galicário; no século XI vestem-se saias franciscas; Afonso VI, Imperador, casa por duas vezes com princesas de França; estreitam-se laços com monges cluniacenses e cistercienses. No século XII D. Afonso Henriques dos terras estremenhas a cruzados: Atouguia, Louirnhã, Alenquer, etc. D. Sancho I alarga a colonização francesa a Vila «Franca», Sesimbra, Aldeia «Galega» - isto é, dos «galécios» ou franceses do sul, por oposição aos «francos» ou nórdicos.
Apesar destes contactos estrangeiros, inventariados por Lapa, a familiaridade dos nossos poetas com o lirismo provençal disseminado em toda a França fez-se fora daqui, durante a emigração em Leão, junto de Afonso IX, provocada pela conduta autoritária do nosso D. Afonso II. Fidalgos portugueses poetas, como D. Gil Sanches, filho de D. Sancho I e da Ribeirinha, e D. Abril Peres, neto materno de D. Afonso Henriques, refugiaram-se entre 1211 e 1216 na corte vizinha, onde trovadores provençais, como Aimeric de Péguilhan, Peire Vidal e Marcabru encontravam ambiente propício. Esses e outros estrangeiros deviam já conhecer a existência do nosso lirismo. Raimbaut de Vaqueiras (1158-1219), ao versejar em cinco línguas, não esquece um romanço que parece português corrompido. Raimon Vidal, nos find do Século XII, estropia a nossa língua em três versos; mas já Bonifácio Calvo, genovês tardio, se mostra seguro nela.
Os géneros poéticos galego-portugueses são três: as cantigas de amor, as de amigo, e as de escarnho e mal-dizer. A cantiga de amor é a ponte de passagem da técnica e do requinte provençalescos. Mas o carácter subtil e um pouco frio dessa poesia estrangeira humanizou-se no temperamento triste e saudoso dos nossos. Os sentimentos galego-portugueses, de uma gravidade anelante, sem esperança e quase sem desejos, fizeram da cantiga de amor uma pura confidência lírica, curta e diáfana. O refrão tradicional comunicou-se-lhe e deu-lhe uma cadência de onda, suspirosa e repetida. Os nossos poetas têm a consciência da originalidade do que fazem. D. Dinis, quando quer trovar à moda de fora, anuncia-o, e acusa os provençais de não serem poetas senão «no tempo da fror». A intimidade do nosso lirismo primitivo excluía os temas «vernais» da poesia da Provença: isto é, a pura descrição do tema primaveril. Só na pastorela e na alba os nossos falam do sol-nado e do «papagai», do «estorninho» e de «tôdalas aves do mundo». O resto são tristezas de amor, encontros na vila, na fonte volvida pelos cervos, no adro da ermida serrana. Os protestos de amor até à morte e as queixas de abandono exprimem-se em composições que têm o contraponto do refrão ou se desenham na secas proporções da mestria provençalesca.
O traço principal do amor cortês é a vassalagem à mulher. A expressão preito e menagem invade a cantiga de amigo, mas perde em sentido feudal o que ganha em dádiva pura. É uma rendição de sentimentos. No amor português trovadoresco não há os graus complicados de acesso do trovador provençal às graças da sua dama. Tudo se resume no simples «entendedor». ou seja o que sente e declara o seu coração cativo. O namorado ou amigo recebe da amiga uma «dõa» ou sinal, um pouco de cabelo ou garceta, às vezes o cordão da camisa. Isto lhe basta. Tem de ser comedido, fechar-se num afecto distante. Alguns, como Pero de Palmeira do Livro de Linhagens e o João Soares de Paiva de que fala o Marquês de Santilhana, ou Macias o enamorado, morrem de puro amor. O gosto da tristeza, o recalque, a fidelidade de olhos baixos, perspectivas de morte e de renúncia, uma solidão que sorri e se contenta de si são a substância e o timbre da nossa cantiga de amor.»

Vitorino Nemésio

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