sexta-feira, 7 de outubro de 2011

As Origens do Lirismo Medieval

«A mais antiga manifestação do génio literário português é a poesia trovadoresca. A sua origem liga-se ao problema das fontes de todo o lirismo românico, questão delicada e obscura.
A explicação mais ampla deste lirismo é a que atende ao estado social e cultural da Europa medieval: cavalaria; vivacidade tradicionalista dos povos romanizados; estética dos poetas latinos que, como Ovídio, dispunham de uma sólida retórica ao serviço do amor e da natureza; o gosto da dança e do canto; andanças de guerra e feira; o culto de Maria comunicado à vida mundana. A mulher começou a ter larga influência social na alta Idade Média. Assim como a Virgem intercedia a Deus pelos homens, a dona servia de medianeira aos vassalos junto do seu senhor. Daí toda uma série de costumes e festas populares e corteses que se polarizavam na mulher. A vassalagem política gerou uma vassalagem cultural de signo feminino e de fidelidade sentimental.
O amor fez-se intelectual e simbólico, fingido, «Cuidar» e «cosirar» (provençalismo) traduziam, na linguagem poética, o estado de íntima absorção do amoroso; «fenhidor» (provç. «fenher») significava uma ficção de amante, o vassalo de coração. Estes sentimentos traduziam, a par do requinte dos costumes, a secularização da arte e da vida interior. Não era uma literatura herética, mas era uma poesia profana, que, ao lado do culto cristão, explorava sentimentos naturais irresistíveis. E, em todo o caso, era uma forma de contágio dos afectos confessados (já não só religiosos) a toda a vida de relação.
Durante o Romantismo procurou-se explicar a poesia romântica medieval pela dos Árabes da Andaluzia. Mas o lirismo arábico clássico, ao contrário do nosso, era exterior e metafórico, sensual e colorido, sem as séries de temas simples e encadeados que o galego-português apresenta. É certo que Ibne Cuzmane, poeta cordovês falecido em 1160, deixou um cancioneiro de zéjeis em árabe vulgar matizado de romantismos, em que Julião Ribera quis ver influências galegas, contrabalançadas pelas da música arábica, na génese do nosso lirismo. Entre estas últimas figuram a importação ou adaptação de alguns instrumentos mouriscos: o arrabil, o alaúde, o adufe, o tambor. Mas a suposta filiação do rondel românico no zéjel arábico é contrariada pelo carácter deste, que aliás deriva de uma forma cultivada por Mocádem de Cabra, poeta cego do século X.
A explicação das origens da alba, da pastorela e da canção da mal-maridada (que quase não existe entre nós) pelas «caroles» ou danças de roda francesas também não se deve admitir. Engenhosa é a doutrina que filia os mesmos géneros e a sua graça primaveril nas antigas festas de Maio. Há evidentemente vestígios pagãos no gosto ocidental pela verdura e pelas fontes. Mas são tradições e práticas populares sem grande reflexo na nossa poesia erótica.
Em Santiago de Compostela, o culto do Apóstolo cujo corpo se dizia arribado às Espanhas desenvolveu uma poesia de santuário e da natureza, expressa em formas paralelísticas ingénuas. Os muçulmanos falavam, do Noroeste ao Sul da Península, um romanço mesclado de arabismos propagado aos moçárabes, o que prova o ascendente da civilização cristã sobre os primeiros. Os muçulmanos de Silves improvisavam na própria língua. Mas a cultura arábica, superior à nossa em ciência, nas técnicas e na arte de narrar, era-lhe liricamente inferior. A nossa cantiga de amigo não parece ter nada de comum com a poesia arábica.
O Romantismo, crente no génio anónimo do povo, inclinou-se também para a origem folclórica da poesia provençal, dialogal e bailada, referindo ao tronco arábico só a canção de amor. Mas a própria poesia popular nasce de autores pessoais. Os jograis, gente do chão, levavam a seiva da poesia do povo à poesia cultivada, não havendo lugar para distinguir geneticamente as duas.
Outra tentativa de explicação do fenómeno trovadoresco é a dos filólogos do médio-latim, que foi a língua de uma literatura rude e apaixonada. A sua poesia rítmica, cheia de sinceridade e de força, não seria indiferente aos poetas provençalescos. O clero médio-latinístico trovava de amor idealizado; os goliardos e clérigos vagantes arrastavam pelas tabernas as vozes do amor libidinoso. Mas o lirismo provençal permanece independente e novo em face dessa dupla erótica do território francês. A sua língua própria é a língua de oc: a do Languedoc, da Provença.
Porventura culturalmente influída pelo médio-latim eclesiástico, a poesia trovadoresca tem seiva popular nos seus temas e módulos, Os seus poetas chamam-se trovadores, palavra que não assentará, como se pretendeu, no verbo turbare, muito empregado na pesca (turvar a água), mas em tropare (fazer tropos ou trobos, como ainda se diz em Trás-os-Montes). O «trobo» profano seria um canto seria um canto parodístico e coreográfico, e recebia o nome de «versus». As formas litúrgicas compreendiam a ladainha, a sequência, o hino; as profanas também o rondel, e influenciariam com o seu fundo popular a rítmica e a métrica litúrgicas.
A cultura medieval, alatinada, cristã e cavaleiresca sobre um fundo pagão sempre pronto a aflorar, adaptando ao calendário católico o culto pagão das estações, dos bosques de das águas deu alma, matéria e sentido floral a toda a poesia românica, que é possivelmente um fenómeno compósito, aliança de múltiplas tendências.
Impressionantemente decisiva a favor da existência de uma poesia românica tradicional anterior aos trovadores galego-portugueses é a descoberta feita em 1948, pela hebraísta Stern, de vinte poesias em hebreu, as moaxás, terminadas por alguns versos em romanço moçárabe transliterados em hebreu – as jaryas, em que a moça morre pelo amante (habib), que lhe leva o coração e onde figuram a mãe e as irmãs confidentes. Garcia Gomez publicou depois análogas moaxás em árabe, renovando-se assim o problema das origens, esmerilado no sentido do tradicionalismo poético por Manéndez Pidal Dámaso Alonso, Eugénio Asencio e outros.»

Vitorino Nemésio 

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