sábado, 8 de outubro de 2011

A Cantiga de Amigo

«A grande originalidade da cantiga de amigo é o artifício confessional que lhe dá a designação. O poeta fala como se fosse a mulher; põe-se nos casos dela, imagina o seu estado - esperança, sobressalto, decepção. A mascarilha feminina trai um modo sub-reptício de configurar sentimentos e uma homenagem do varão, que ao mesmo tempo dá voz a quem por insuficiência ou recato a não tem.
Podemos distinguir dois tipos deste género, do ponto de vista formal: a bailada (a que alguns chamam impropriamente serrana ou serranilha, e cossante, - de de «cosso», CURSU: «dança»), composição tradicional, descritiva, de talhe paralelístico, caracterizada por uma espécie de  espiral rítmica que o refrão vai monotonamente fixando: e a cantiga culta, contaminada pelo vocabulário cortês, de paralelismo reduzido como na cantiga de amor, e às vezes sem refrão (cantiga de mestria). Quanto aos temas e entrecho, distinguiremos: a pura confidência lírica, ao modo da cantiga de amor, mas mais verdadeira e vivida; a tenção ou diálogo com o amigo, a amiga, ou a mãe. As conversas entre esta e a filha sobre os propósitos e merecimentos do namorado constituem o tipo de tenção mais curioso. A mãe é discreta, vigilante, severa ou concessiva, verdadeiro poder moderador ou anjo tutelar dos leais namorados. Citaremos enfim dois subgéneros, raros no galego-português: um, de origem francesa e aparentado com a tenção, a pastorela, em que um cavaleiro requesta a pastora cauta ou indiferente: verdadeira cantiga don-juanesca, quando não é um simples desabafo de pastora; e a alba, de fonte erótica, tipo harmonioso de poesia de luz e de júbilo, de que só Nuno Torneol deixou um exemplo perfeito.
Mas mais importantes do que as formas da cantiga de amigo são as suas situações e matizes sentimentais. O amor galego-português aparece tenso e súbito: um simples olhar selou para sempre dois destinos. Só a confissão é receosa, intimamente trabalhada pelo recato e pela dúvida. A própria certeza do amor correspondido gera uma alegria difusa, que se fecha consigo à chave. E logo concessões a meio, arrufos, pequenas provações calculadas. Só o sentimento do perjúrio, a imagem de «o que mentiu do que pôs comigo», abrindo o coração da amiga dá força e desespero a um amor de mágoa e mesura. A mãe então suaviza, aconselha, compreende. Às vezes vai mais longe, e leva o seu recadinho... Mas o papel de intermediária cabe sobretudo à amiga da mesma idade - uma mediação inocente, avisada, sem descaros de Celestina. Assim a cantiga de amigo se mantém nos limites de um pequeno drama lírico, de amor depurado e profundo, nascido da vida caseira e criado no longo apartamento.»

Vitorino Nemésio

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