A sátira provençal conhecia três modos: o «sirventês» moral, que satirizava a cavalaria em crise, as mulheres e o clero devasso; o «sirventês» político, critica das guerras feudais e cismas religiosos; enfim, o pessoal, ou sátira privada. Também a nossa poesia satírica primitiva acusa planos diferentes. A cantiga de «escarnho» era impessoal e velada, uma verdadeira carapuça. A de mal-dizer chamava as pessoas e coisas pelos seus próprios nomes, criando uma literatura grosseira, pré-rabelaisiana, de enormidades e violências proferidas quase ingenuamente. Vinham depois os joguetes de arteiro, as risadilhas, a cantiga de seguir ou paródia, e a própria tenção lírica com ressaibos de chufa. Assim a verdadeira poesia alternava com o gosto polémico e faceto, taõ do feitio peninsular. As cantigas de amor e de amigo degeneravam algumas vezes em puros escárnios de amor. Meter a ridículo as «dõas» trocadas pelos amantes, cantar as velhas presumidas e feias, as intimidades de alcova, as raparigas pintadas, são preferências de autênticos poetas como Pedr' Amigo de Sevilha, Guilhade, Pero Garcia Burgalês e Pero de Armeá.
Outros, troçando do cavaleiro famélico e do senhor pobre e presumido, antepassado dos fidalgos de Gil Vicente, denunciam o trovador que fala dos Lugares Santos e alardeia sabenças, os poetas com fome e sem talento, os pais que aposentam num bom casamento as filhas, os rábulas, os maus juízes, os bruxos, as éguas lázaras.
Mas o puro género satírico é o que se apodera de escândalos colectivos ou de pessoas escandalosas de significação social. A felonia dos alcaides de D. Sancho II indigna Vuituron, Diogo Pezelho e outros poetas. Burgalês e Pero de Ambroa tomam à sua conta uma bailarina ou soldadeira galega, a Balteira, que seduzia os grandes senhores, jogava os dados, se fez cruzada numa surtida de Afonso X a Tunes e acabou freira no mosteiro do Sobrado, em estilo de grande pecadora. Outros tomam de ponta D. João Soares Coelho por ter cantado uma ama de leite na corte de Afonso o Sábio. É todo um certame de gazetilhas, para que contribuem Esgaravunha, Vuituron, Alvelo, Guilhade e dois grandes jograis, Lourenço e Bolseiro. Lourenço foi pedra de escândalo de uma larga e azeda polémica, a primeira questiúncula de capelas da literatura portuguesa. Era jogral do trovador Guilhade, e brigaram. Lourenço atreveu-se a aconselhar o amo a mondar as cantigas; Guilhade ameaçou que lhe abria a cabeça com o próprio citolon. Outro poeta de estirpe, D. João de Aboim, chama-lhe asno. Rodrigu' Eanes barra-lhe o acesso ao paço, e o pobre Lourenço, desabafando contra a avareza e ganância dos privados, refugia-se na corte de Afonso X, onde Joan Vasques insinua que ele teria fugido de Portugal por matador ou ladrão. Mas vive lá próspero e tranquilo.
Outras vezes são os poderosos que se queixam de quem lhes está por baixo. É Afonso X, que, abandonado por muitos dos seus cavaleiros na repressão da revolta dos muçulmanos andaluzes (1260), pede à poesia a desforra de uma bela invectiva (CV, 77) ou descreve com brio a fuga dos ginetes cristãos na refrega de Alcalá, quatro anos depois (CV, 74). Finalmente, a troça aos cavaleiros e infanções que descem de condição e exploram o povo dos concelhos tenta Pero da Ponte e outros poetas do tempo. O cancioneiro escarninho ilustra como uma água-forte as injustiças e podres da sociedade medieval. Gravado com verve e brutalidade, é o reverso da nossa medalha lírica. A flor da avelaneira e a do verde pinho caem e deixam no seu lugar o sincero estadulho lusitano.»
Vitorino Nemésio
Sem comentários:
Enviar um comentário