sábado, 27 de outubro de 2012

Idade de Ouro


Ovídio, Metamorfoses, Livro I

De formas mudadas em novos corpos leva-me o engenho a falar. Ó deuses, inspirai a minha empresa (pois vós a mudastes também), e conduzi ininterrupto o meu canto desde a origem primordial do mundo até aos meus dias.
Antes do mar e das terras e do céu, que tudo cobre, um só era o aspecto da natureza no orbe inteiro: Caos lhe chamaram. Era uma massa informe e confusa, nada a não ser um peso inerte, nela amontoando-se as sementes discordantes de coisas desconexas. Não havia ainda qualquer Titã a oferecer luz ao mundo, nem a Febe nova, crescendo, restaurava os seus cornos, nem a Terra estava então suspensa no ar que a envolvia, em equilíbrio pelo próprio peso, nem Anfitrite estendera os seus braços a toda a volta da longa margem das terras. Mas ainda que houvesse ali terra, e mar, e atmosfera, a terra era tão instável, as ondas não navegáveis, e a atmosfera sem luz. Nada conservava a sua forma, cada coisa opunha-se à outra, pois num mesmo corpo o frio guerreava o quente, o húmido lutava com o seco, o mole com o duro, o peso com a ausência de peso.
Um deus, ou a natureza já mais benigna, pôs fim à disputa. De facto, as terras separou do céu, das terras as ondas, e dividiu o céu puríssimo da atmosfera espessa. Após os ter desembaraçado e extraído da escuro massa, uniu cada um ao seu lugar, em harmoniosa paz.
O fogo, a energia imponderável do céu convexo, pôs-se a brilhar e fez para si um lugar no ponto mais alto. O que lhe é mais próximo, pelo lugar e em leveza, é o ar. A terra, mais densa que eles, arrastou partículas maiores, e o seu peso puxou-a para baixo. A água, fluindo à volta, tomou posse do último espaço e confinou o disco sólido.
Quando aquele deus, quem quer que ele fosse, assim dispôs aquela massa e a dividiu, e, dividida, organizou em partes, primeiro, aglomerou a terra, para que fosse uniforme em toda a parte com o formato de um grande círculo. Depois, ordenou que os mares se expandissem, inchassem pelos impetuosos ventos, e rodeassem as costas da terra. Juntou também as fontes e lagoas imensas e os lagos, e também os rios em declive cingiu com sinuosas margens. Destes, nos variados sítios, uns são absorvidos pela terra, outros chegam ao mar e, acolhidos pela imensidão de água mais livre, golpeiam a costa em vez de as margens. Ordenou aos campos que se dilatassem, vales se cavassem, folhas cobrissem bosques, se erguessem pedregosos montes. E tal como há duas zonas no lado direito e outras tantas no esquerdo a dividir o céu (uma quinta é a mais ardente), assim o zelo divino dividiu em igual número a massa que o céu envolvia, e outras tantas regiões traçou na terra. Destas, a do meio não pode ser habitada devido ao calor, neve funda duas cobre. Entre aquela e estas, pôs outras duas, dando um clima temperado, com chamas à mistura com frio. Por cima delas situa-se o ar, que é mais pesado que o fogo, tanto quanto o peso da água é mais leve que o peso da terra.
Ordenou que ali as névoas se assentassem, ali as nuvens e os trovões, que perturbarão as mentes dos humanos, e os ventos, que produzem coriscos junto com relâmpagos. A estes, o construtor do mundo não permitiu que tivessem o ar indistintamente. (Ainda hoje, embora cada um dirija o sopro a partir de regiões diversas, a custo são travados de estraçalharem o mundo: tal a discórdia entre irmãos.) O Euro recolheu-se junto à Aurora, ao reino dos Nabateus e à Pérsia, e às montanhas expostas aos raios da manhã; o Héspero e os litorais amornados pelo sol do entardecer situam-se vizinhos do Zéfiro; a Cítia e os sete Triões foram invadidos pelo gélido Bóreas; a região oposta a esta é encharcada por nuvens constantes e o pluvioso Austro. Sobre tudo isto colocou o éter puríssimo, desprovido de peso, livre de quaisquer resíduos impuros da terra. Mal tudo assim compartimentara com limites precisos, quando as estrelas, há muito oprimidas por uma névoa impenetrável, desataram a fervilhar por todo o céu. E para que região alguma ficasse sem os seus seres vivos, os astros e as formas de deuses ocupam o solo celeste, as ondas couberam aos reluzentes peixes para lá viverem, a terra acolheu os animais silvestres, o móvel ar as aves.
Faltava ainda um ser mais sublime que estes, mais capaz de conter uma alta inteligência, que pudesse reger os outros. Nasceu então o homem. Este, ou o fez de semente divina aquele artífice do universo, a origem do mundo melhor; ou então a terra recente, separada há pouco do alto éter, talvez ainda contivesse sementes do céu, seu parente, terra que o filho de Jápeto, misturando com água da chuva, moldou à imagem dos deuses que governam tudo. E se os outro animais, dobrados para baixo, olham o chão, conferiu ao homem uma cara virada para cima, e instruiu-o a olhar para o céu e a erguer o rosto erecto para os astros. Deste modo, o que há pouco era terra em bruto e sem forma transformou-se e assumiu formas de homens jamais vistas.
A primeira idade a surgir foi a de ouro. Sem justiceiro algum, sem leis e de livre vontade, cultivava a lealdade e a rectidão. Não havia castigos nem medo, nem palavras de ameaça gravadas no bronze afixado, nem turba de suplicantes temia o rosto do seu juiz, mas viviam seguros, sem justiceiros. Ainda o pinheiro não fora cortado das suas serranias e descera às límpidas ondas a visitar mundo estrangeiro, e os mortais não sabiam de outras costas senão as suas. Ainda não cingiam os povoados de fundos fossos a pique, e não havia trombeta direita, nem trompa curva de bronze, nem capacetes, nem espadas. Sem precisão de soldados, as gentes viviam numa ociosidade doce, livres de cuidados. A própria terra, isenta de deveres, intocada pela enxada, ferida por nenhum arado, tudo dava espontaneamente. E, contentes com o alimento criado sem ninguém o forçar, eles colhiam medronhos e morangos dos montes, e bagas de corniso e amoras presas em espinhosas silvas, e bolotas, que tinham tombado da larga árvore de Júpiter. A Primavera era eterna, e com tépidas brisas os plácidos Zéfiros acariciavam as flores nascidas sem semente. Depois, até já a terra sem ser arada produzia cereais, e o campo sem lavra empalidecia de carregadas espigas. E então, corriam rios de leite, então, rios de néctar, e loiro mel pingava do cimo da verdejante azinheira.
Depois de Saturno ser enviado para a negridão do Tártaro e o mundo ficar sob Júpiter, sucedeu a geração de prata, inferior ao ouro, mas mais valiosa que o fulvo bronze. Então, Júpiter encurtou a duração da antiga Primavera, e, através de Invernos, Verões, inconstantes Outonos e uma Primavera breve, dividiu o ano em quatro estações. Então, pela primeira vez, o ar, queimado por calor seco, ficou incandescente, o gelo pendeu, congelado pelos ventos; então, pela primeira vez, entraram em casas (as casas eram cavernas, densas moitas, ramos entrançados com cortiça); então, pela primeira vez, enterraram as sementes de Ceres em longos sulcos e os bezerros gemeram sob o peso do jugo.
Após este geração, seguiu-se-lhe a terceira, a de bronze, de índole mais feroz, mais pronta para as horrendas armas, mas ainda não criminosa. E a última é a do duro ferro. De súbito, todo acto nefando irrompe nesta idade de metal menos valioso. Fugiram o pudor, a sinceridade, a lealdade, e, no lugar destes, sucederam-se-lhes o logro, e a traição, e as insídias, e a violência, e a criminosa paixão por possuir. Velas desfraldava aos ventos (ainda nem os conhecia bem) o marinheiro, e as quilhas, que por tanto tempo estiveram nos altos montes, saltitavam em ondas desconhecidas. O prudente agrimensor marcou a terra, antes comum a todos como a luz do sol e os ares, com longos limites. E já nem apenas as searas e os alimentos devidos se exigiam ao rico solo, mas descem pelas entranhas da terra abaixo, desatam a escavar riquezas que aquela ocultara e movera para junto das sombras do Estígio, estímulos para o mal. Já o pernicioso ferro de lá surgira, e o ouro, mais pernicioso que o ferro. E surge a guerra, que luta recorrendo a ambos, e, com mão ensanguentada, brande as estrepitosas armas. Vive-se da rapina. O hóspede não está a salvo do hospedeiro, nem o sogro do genro: até a afeição entre irmãos é rara. O homem maquina a morte da esposa, esta a do marido. As aterradoras madrastas misturam amarelentos venenos. O filho, antes do tempo, inquire sobre a idade do pai. O respeito jaz vencido, e a virgem Astreia foi a última dos seres celestes a deixar as terras encharcadas de sangue.

Ovídio, Metamorfoses

sábado, 13 de outubro de 2012

Almeida Garrett


Sobre Folhas Caídas
O amor vivido.
É neste livro que Garrett atinge o fastígio do lirismo. Amava agora, como só sabe amar um homem maduro que se apaixona violentamente. A Viscondessa da Luz, D. Rosa de Montufar, obrigou o poeta a semear nestas poesias «luzes» e «rosas» a granel. Foi a sua principal inspiradora, porque há outras. Com elas entretém Garrett um diálogo vivo, cheio de realismo, muito embora só ouçamos a sua voz, como só se ouve a de Aires Rosado numa cena da conhecida peça de Gil Vicente Quem tem Farelos?. Mas não nos é difícil, contudo, adivinhar o que elas lhe responderiam. Garrett cantou em Folhas Caídas o amor que viveu e como o viveu.

Amor intenso.
Este amor que se identifica com a mesma vida, é em Garrett vulcânico, tempestuoso, intenso, tão intenso que faz sofrer, que quase mata, que é capaz de o atirar até para os profundos do Inferno.

Amor carnal.
Garrett, em Folhas Caídas, ama com a alma e com o corpo, com os olhos, com os ouvidos, com os sentidos todos. Sem preconceitos, ultrapassa os idealismos petrarquistas e, se não ignora a mulher anjo, conhece muito mais a mulher mulher.
Estávamos habituados a que os poetas analisassem os efeitos do amor na alma. A fenomenologia da paixão amorosa repercutida nos sentidos foi Garrett o primeiro que a cantou a valer.

Temas do Romantismo


Temas do Romantismo

Culto da Idade Média. O romantismo deixou de ter admiração por tudo quanto era greco-romano e baniu o uso da mitologia. A Idade Média, tempo admirável em que o povo ajudava os reis a criar nações e em que os mesteirais, organizados em corporações, tinham real valor, seduziu com as suas narrações cheias de peripécias os românticos, visceralmente opostos aos absolutismos e partidários em política da soberania do povo.
Esta evasão para os tempos medievos proporcionou aos escritores o contacto com lugares, factos e tipos capazes de inspirarem a imaginação mais fria: castelos musgosos, lendas e tradições, cavaleiros, monges, cruzados, mouros, judeus.
Note-se, porém, que os temas de actualidade não foram postergados (por exemplo em Viagens na Minha Terra, de Garrett) e até estiveram em voga nas poesias revolucionárias dos epígonos do romantismo, para só falarmos no caso português.

Descoberta da Paisagem. O romantismo descobriu a paisagem tal qual é no particular, e pôs de parte a natureza sempre igual e artificial dos clássicos. Postergou-se  o bucolismo de «ervas verdes e rios tranquilos». Agora, o entusiasmo vai para a paisagem agreste, exótica, para a selva virgem com a sua típica desordem, com suas asperezas e impetuosidades, com suas cataratas e rios caudalosos. A paisagem nocturna, sepulcral, luarenta, adapta-se aos sentimentos melancólicos dos autores. Às vezes, num semi-panteísmo, o  romântico vê-se embebido na mesma paisagem, a fazer um todo com ela. Ela como que se transfigura e se transforma em símbolos. O poeta romântico tem com ela uma espécie de contacto sensual que o leva ao êxtase.
A procura desta paisagem levou o escritor romântico a evadir-se no espaço e a sentir-se bem nos países de tom exótico, de gosto bárbaro e primitivo cuja cor local pinta com prazer e transmite com verdade.

O homem real. Sabemos que a beleza para o escritor clássico residia na imitação da natureza, não no particular, mas no universal. Em vez de criar tipos verosimilhantes aos seres individualizados e reais, idealizava seres com todas as perfeições e sem quaisquer defeitos.
O autor romântico procede de maneira diferente: desenterra, cria tipos humanos autênticos. Sente gosto em particularizar, em referir com pormenor os traços individuais dos heróis, sendo assim fiel à história e à cor local. Dá até preferência aos que vivem fora da lei, aos aleijões físicos e morais: o ladrão, o pirata, o assassino, o traidor, o perjuro, o incestuoso, o adúltero, a prostituta, o sacrílego, o cego, o corcunda, o mutilado. Às vezes, não teme aliar a elevação de sentimentos à hediondez física (como acontece no Quasimodo de Nossa Senhora de Paris e no Homem que Ri, de Vítor Hugo).

Pessoalismo e melancolia. O romântico porfia em expandir o que nele há de mais pessoal, desde a sensibilidade e os voos da infância até aos impulsos do subconsciente. Não admira, pois, que mostre especial predilecção pela melancolia, de todos os sentimentos o mais sentimental. Daí que, ao contrário dos clássicos, amantes da claridade mediterrânica, prefira ambientes de nebulosidade nórdica, o entardecer, o escurecer, a noite, as florestas sombrias, as cavernas, os agouros, os sonhos.

Exaltação do que é nacional e popular. A cultura francesa do século XVIII tinha unificado espiritualmente a Europa; Napoleão Bonaparte tentou a unificação política. Como reacção, os escritores românticos procuram exaltar tudo o que é nacional, tudo quanto é popular. E crêem que a alma dos nacionalismos europeus incarnou no povo na Idade Média e no povo se tem mantido inalterada. O popular e o folclórico adquirem, desta maneira, um grande prestígio junto da nova escola.
Foi por isto que a literatura romântica cedo adquiriu um carácter cívico e patriótico e enveredou a pouco e pouco pelo historicismo, tratando com muito carinho figuras nacionais.

Liberdade de inspiração. O génio criador não pode estar sujeito a normas férreas, como eram as da estética clássica. Essas normas são totalmente banidas, pois convertem a arte num puro mecanismo. O escritor romântico voa nas asas da imaginação, dos seus sentimentos e instintos. Criará obra estritamente pessoal. Não admite mais a divisão dos géneros clássicos. Com excepção do soneto, que conserva, inventa novos agrupamentos estróficos. Opõe-se tenazmente à imitação paradigmática dos escritores gregos e romanos.

Confronto entre as tendências do classicismo e do romantismo:

Classicismo
Romantismo
A razão, a inteligência
O geral, o universal
O objectivo, o impessoal
A vontade, o heroísmo
A inteligência, as abstracções
A clareza, a ordenação
O paganismo
O culto da antiguidade greco-latina
O aristocrático, o nobre, o tradicionalista
O coração, a sensibilidade, a imaginação
O particular, o individual
O subjectivo, o pessoal
A melancolia, o abatimento
As sensações, a sensibilidade
O mistério, o sonho, a meditação
O cristianismo
O culto da Idade Média e dos tempos modernos
O popular, o pitoresco, a paisagem

Mahler: Symphony No. 9: Mov. 1 - Part 1 of 3

Romantismo


Romantismo

«Foi na Inglaterra e na Alemanha que, em meados do século XVIII, alguns poetas voltaram as costas aos modelos do classicismo, inspirando-se na Natureza, tal qual a viam e não tal qual Horácio e outros antigos lha mandavam ver. O sentimentalismo subjectivo veio assim substituir a gama imensa, mas limitada, de temas catalogados pelos Gregos e Romanos. Nunca mais os escritores aceitariam temas impostos do exterior. Deixar-se-iam arrastar – isso sim – pela evocação do popular, do medievo, do exótico, pela exaltação da liberdade, pelo «eu», medida do Universo, pela fascinação do nada, do abissal, da morte, da noite.

Em Portugal
O início do romantismo em Portugal anda, extrinsecamente pelo menos, ligado às lutas civis entre miguelistas e liberais. Por duas vezes, depois da Vila-Francada e da Abjuração da Carta, muitos partidários de D. Pedro IV tiveram de exilar-se em Inglaterra e em França. Quis a Providência que entre esses emigrados estivessem os jovens escritores Almeida Garrett e Alexandre Herculano.

Psicologia do homem romântico
1.      O culto do «eu»
Contra o objectivismo absorvente e a sujeição às regras escravizantes dos neoclássicos, apregoam os românticos a independência, o espírito individualista, a violenta exaltação da própria personalidade. O «eu» é o grande, o máximo ser objectivo; o mundo externo terá apenas a realidade que nele projectar a inteligência e a imaginação da pessoa que o examina e o vê. Sem caírem de borco no idealismo filosófico, embrenharam-se, pelo menos, num idealismo poético. Na génese desta atitude está, sem dúvida, a concepção do «eu» da filosofia idealista de Fichte e Schelling.
2.      Ânsia de liberdade
Do acentuado individualismo do homem romântico brota naturalmente o desejo histérico de partir todas as cadeias que o prendem à colectividade. Daí a ânsia de liberdade em todos os sectores da vida: liberdade na literatura, na indústria, no comércio, na política, na consciência, na manifestação dos sentimentos e instintos.
a)      Liberdade política. A vontade do rei deixou de ser soberana para o romântico. O cidadão deve manifestar livremente as suas opiniões e ter mesmo desimpedido o caminho que o conduz à governança pública. Se for preciso, gritará contra os tiranos, promoverá revoluções.
b)      Liberdade moral. Para o romântico a norma de moralidade não é constituída pelos ditames da sã razão, nem muito menos pelas crenças religiosas. A única norma a que deve sujeitar o seu viver é o instinto, é o fogo da paixão. Reconhecerá, no entanto, a necessidade afectiva de Deus e da religião.
c)      Liberdade nos sentimentos. Diz Ortega y Gasset que, antes do romantismo, costumava o homem envergonhar-se das suas emoções, tão orgulhoso se sentia das suas ideias. A razão era, com efeito, um dique maciço e irremovível a conter a manifestação dos sentimentos, ainda mais os legítimos. O homem romântico dinamitou esse dique, para se deixar arrastar pelas mais violentas emoções.
3.      Angústia metafísica
O humanista julgava-se seguro na vida, com os dois pés bem assentes no mundo, depois de descobrir as leis da Natureza, que julgava perfeita, e sobretudo depois de ganhar a convicção de que ele a dominava e ela o servia. O romântico, encerrado no seu egocentrismo, perdeu toda a confiança na razão e nas suas possibilidades. A vida é para ele um problema insolúvel. O instinto mostra-lhe a toda a hora a existência de forças estranhas que ele não domina, que nem sequer conhece, e que, apesar de tudo, o conduzem pela existência adiante, como que arrastado por um cego destino. A Natureza, essa, contempla impassível a sua dor. A resolução dos seus problemas está longe, muito longe. O homem romântico levanta então os olhos para o infinito e para o absoluto que o homem clássico ignorou. Sente uma nostalgia intensa de algo distante no tempo e no espaço. Busca esse algo, quer atingi-lo, mas, quanto mais anda, mais longe o vê. Chega assim ao desespero. A inquietação febril e a angústia metafísica surgem inevitavelmente.
4.      O espírito idealista
Olhos fitos num mundo superior que a razão não sabe definir, o romântico começa a idealizar, a fazer de conta. Não se contenta com o prosaísmo das festas da Corte, com o indiferentismo irónico, com o cepticismo do século XVIII. O seu coração generoso deixa-se embalar num certo espiritualismo e vai lançar-se no culto da Humanidade, da Pátria, da mulher. E então encaminha toda a potencialidade do seu ser para a filantropia, para o patriotismo, para o amor. E fica a sonhar.
5.      O choque com a realidade: pessimismo e evasão
O romântico, como acabamos de ver, idealiza o mundo, construindo-o no ar, ou sobre castelos de areia. Quando baixa à terra, não encontra esse mundo. A Humanidade não o compreende; a Pátria, se for preciso, desterra-o; a mulher ou não é um anjo ou atraiçoa-o. Que há de fazer?
Deste choque brutal com a realidade provém o desengano e para esse desengano só existe uma solução: fugir. Uns fogem de terra em terra, como Chateaubriand, Byron e Garrett; outros refugiam-se  na Idade Média ou na paisagem do exótico Oriente, como Walter Scott, Herculano e Vítor Hugo; outros vão mais longe e suicidam-se, fugindo assim apressadamente para a eternidade, como Kleist, Nerval, Camilo, Antero, Trindade Coelho.
O que dissemos destes autores verifica-se mais ao pé da letra nos heróis criados ao abrigo dos cânones do romantismo: evadem-se no tempo e no espaço, refugiam-se no sonho e no fantástico, na orgia e na dissipação.»