domingo, 19 de maio de 2013

Aparição - Apontamentos


Aparição, de Vergílio Ferreira

Estrutura

Quanto à primeira parte (aquela a que chamamos preâmbulo), ela é de facto alheia à história, ou, melhor, está já «de fora» da história. Mas necessariamente alguma relação mantém com ela; de contrário, seria excrescência inútil, por carência de função. A verdade é que, logo aí, o discurso pessoal sugere uma narrativa de 1ª pessoa, um narrador homodiegético (que pouco adiante se definirá autodiegético) e, o que sob certos aspetos terá bastante importância , um distanciamento de «muitos anos» em relação aos factos que provavelmente irão ser narrados. O distanciamento é temporal (explicitamente temporal); mas, entre os dois eus (o que, «nesta sala vazia», relembra, e o que, «muitos anos» atrás, agiu, pensou, sentiu), podem ter-se ou não instaurado outras distâncias; ética, afetiva, metafísica…
Sem analisarmos certos aspetos (que nos parecem de muito interesse, mas que reservaremos para outro lugar) e limitando-nos neste momento à estrutura da obra, parece-nos desde já importante chamar a atenção para estas páginas iniciais. Em síntese, sugere-se: uma narrativa de 1ª pessoa; um (provável) narrador atormentado por questões metafísicas numa linha de problemática existencialista; relativamente aos factos relembrados (que serão naturalmente o assunto da narrativa), um distanciamento temporal de «muitos anos» que poderá, por um lado, em termos de diegese, ser acompanhado ou não de outros distanciamentos, e, por outro lado, pode indiciar, em termos de discurso, uma imagem do eu-narrador prevalecendo sobre a imagem do eu-personagem.
(…) O narrador termina a história no capítulo 25, à maneira clássica, com um desfecho abrupto e trágico. Poderia ter ficado por aí. A história tinha o seu fim, o livro tinha o seu fim. Mas não procedeu deste modo. Na realidade, o doador da narrativa não quis usar do poder taumatúrgico de que estava revestido, para fazer desaparecer, categórica e repentinamente, com um simples ponto final, todo o universo diegético que criara. E assim, por um lado, fornece informações suplementares e esclarecimentos que se ligam aos factos recentes; por outro, resume em poucas linhas muitos anos e alguns acontecimentos relativos à sua família e a si próprio. O epílogo (a existir como tal) terminaria logicamente no período: «Casei, adoeci, retirei-me do ensino.» Todo este segmento do discurso pertence sem hesitação à diegese. E teríamos assim um romance fechado, concluído. O destino das personagens é revelado, conhecido.


Ação

Aparição não é um romance de ação. É ante sum romance me que a narrativa romanesca se funde com uma espécie de reflexão, ou, se se preferir, funciona ao serviço da problemática metafísica colocada no romance.
Mesmo assim, a ação é bipartida. Há toda uma série de acontecimentos em torno da família Soares (numa aldeia da Beira), outra série de factos envolvendo sobretudo a família Moura (em Évora). Alberto participa de um e de outro ciclo. Mas não será essa coincidência que faz dele o protagonista. O que na realidade lhe confere esse estatuto é o peso que lhe cabe na problemática em questão. Ele é, por assim dizer, o ponto de convergência de todos os aspetos dessa problemática; é ele que constantemente se confronta com todas as outras personagens; as que têm problemas e as que não têm problemas.
Pela sua complexidade e pelo papel que desempenha, é Sofia, em relevo, a segunda personagem, constituindo com Alberto e Carolino um triângulo já clássico. Mas, nos acontecimentos ocorridos em Évora em redor da família Moura, há um fio condutor que desemboca e se centra em Ana.
Assim, podemos considerar dois conjuntos de acontecimentos e personagens, um secundário (Família Soares – Beira), o outro principal (Família Moura – Évora), tendo apenas em comum a personagem Alberto. Podemos também admitir que esse conjunto que constitui a ação principal  é ainda passível de uma bifurcação que leva, por um lado e com mais relevo, a Sofia, por outro e talvez com menos evidência, a Ana.
Tentemos reunir os principais acontecimentos e fatores atinentes a cada um destes grupos.

A – Ação principal (Família Moura – Évora)
Em torno de Sofia:
Primeira sequência de Sofia, feita pelo Dr. Moura a Alberto, à mesa de um café; primeiro encontro de Alberto com Sofia (em casa dela); lições de Latim; conversas de Alberto com Carolino; certo «encontro» metafísico e relações físicas entre Alberto e Sofia; episódio da morte da galinha; relações de Sofia com Carolino; intermitentes relações de Sofia com Alberto; ciúmes de Carolino e louca fascinação de matar Alberto; assassinato de Sofia por Carolino.

Em torno de Ana:
Mal disfarçada angústia metafísica da Ana; sua frustração de mulher impossibilitada de ter filhos; certa humilhação relativamente ao marido, ao seu espírito terra a terra, às suas preocupações de exclusiva ordem prática, à sua exibição de «posse» da mulher; morte de Bailote, deixando órfãos pequenos; morte de Cristina (para quem Ana transferira o seu potencial amor maternal); regresso à «crença», à paz, à serenidade, ao equilíbrio interior, definitivamente assegurados pela «dádiva» do marido: os dois filhos mais novos de Bailote.

B – Ação secundária (Família Soares – Beira)
Reunião e apresentação da família, na casa dos pais, pelas Vindimas; morte do pai; decadência da mãe e seu desinteresse pela vida; partilhas a pedido da mãe; a Alberto cabe o velho casarão da família.

Muitos anos mais tarde, esse casarão povoado de recordações irá ser o verdadeiro laboratório de toda a narração. Neste sentido, podemos considerar que instaura no romance certo tipo de unidade.


Código da Metafísica, Signos da sua representação

Código da Metafísica
É a problemática existencialista que se apresenta neste romance. Não é muito difícil apercebermo-nos dessa problemática:
- Busca do «eu» essencial, apenas pressentido como fugaz «aparição» no «existente»
- O absurdo da morte perante a necessidade da vida
- A obscura certeza de que é no Homem (e não em qualquer Transcendência) que estão as respostas definitivas para a justificação da condição humama em face da vida e da morte
- O homem é um «projeto», o que faz de si próprio
- O homem é um ser perfeitamente livre
- Todo o homem é responsável por toda a Humanidade
- Impossibilidade de identificar os «outros» como seres em si próprios

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