domingo, 19 de maio de 2013

Focalização

«Na focalização homodiegética, o narrador responsável pela focalização é agente - comparsa ou protagonista, (e, neste caso, falaremos de focalização autodiegética) - do mundo diegético do romance em causa. A focalização homodiegética ocorre no impropriamente chamado "romance na primeira pessoa" - quer naquele romance em que o narrador coincide  com o herói (A Relíquia, de Eça de Queirós, Dom Casmurro, de Machado de Assis, Aparição, de Vergílio Ferreira), quer naquele romance em que o narrador é uma personagem secundária (O Conde de Abranhos e A cidade e as serras, de Eça de Queirós, O grande Gatsby, de F. Scott Fitzgerald) -, bem como no romance epistolar.
A focalização autodiegética comporta ainda algumas modulações importantes. Entre o eu narrador e o eu narrado pode cavar-se uma distância temporal mais ou menos longa que determina entre os dois eus distâncias de outro teor: uma distância ideológica, uma distância psicológica, uma distância ética... Amadurecido ou envelhecido,o eu narrador, ao rememorar eventos do eu narrado, pode assim assumir uma atitude irónica e judicativa ou uma atitude solidária perante o eu narrado, pois que o fluir do tempo esgarça a  identidade entre o eu narrador e o eu narrado, instaurando entre ambos uma relação ambígua e complexa de continuidade e de ruptura.
É na velhice que o narrador de Dom Casmurro relembra a sua infância e a sua adolescência, os seus amores e a sua tragédia com Capitú, resultando naturalmente daí a não coincidência psicológica e ideológica entre o eu-instância narrativa e o eu-agente diegético. É este desvio, apreendido e pensado dentro do âmbito de uma certa unidade fundamental da pessoa humana, que o narrador de Aparição regista explicitamente, ao confessar: «Conto tudo, como disse, à distância de alguns anos. Neste vasto casarão, tão vivo um dia e agora deserto, o outrora tem uma presença alarmante e tudo quanto aconteceu emerge dessa vaga das eras com uma estranha face intocável e solitária. Mas os elos de ligação entre os factos que narro é como se se diluíssem num fumo de neblina e ficassem só audíveis, como gritos, que todavia se respondem na unidade do que sou, os ecos angustiantes desses factos em si - padrões de uma viagem que já mal sei».

Vítor Manuel de Aguiar e Silva, Teoria da Literatura

Aparição - Apontamentos


Aparição, de Vergílio Ferreira

Estrutura

Quanto à primeira parte (aquela a que chamamos preâmbulo), ela é de facto alheia à história, ou, melhor, está já «de fora» da história. Mas necessariamente alguma relação mantém com ela; de contrário, seria excrescência inútil, por carência de função. A verdade é que, logo aí, o discurso pessoal sugere uma narrativa de 1ª pessoa, um narrador homodiegético (que pouco adiante se definirá autodiegético) e, o que sob certos aspetos terá bastante importância , um distanciamento de «muitos anos» em relação aos factos que provavelmente irão ser narrados. O distanciamento é temporal (explicitamente temporal); mas, entre os dois eus (o que, «nesta sala vazia», relembra, e o que, «muitos anos» atrás, agiu, pensou, sentiu), podem ter-se ou não instaurado outras distâncias; ética, afetiva, metafísica…
Sem analisarmos certos aspetos (que nos parecem de muito interesse, mas que reservaremos para outro lugar) e limitando-nos neste momento à estrutura da obra, parece-nos desde já importante chamar a atenção para estas páginas iniciais. Em síntese, sugere-se: uma narrativa de 1ª pessoa; um (provável) narrador atormentado por questões metafísicas numa linha de problemática existencialista; relativamente aos factos relembrados (que serão naturalmente o assunto da narrativa), um distanciamento temporal de «muitos anos» que poderá, por um lado, em termos de diegese, ser acompanhado ou não de outros distanciamentos, e, por outro lado, pode indiciar, em termos de discurso, uma imagem do eu-narrador prevalecendo sobre a imagem do eu-personagem.
(…) O narrador termina a história no capítulo 25, à maneira clássica, com um desfecho abrupto e trágico. Poderia ter ficado por aí. A história tinha o seu fim, o livro tinha o seu fim. Mas não procedeu deste modo. Na realidade, o doador da narrativa não quis usar do poder taumatúrgico de que estava revestido, para fazer desaparecer, categórica e repentinamente, com um simples ponto final, todo o universo diegético que criara. E assim, por um lado, fornece informações suplementares e esclarecimentos que se ligam aos factos recentes; por outro, resume em poucas linhas muitos anos e alguns acontecimentos relativos à sua família e a si próprio. O epílogo (a existir como tal) terminaria logicamente no período: «Casei, adoeci, retirei-me do ensino.» Todo este segmento do discurso pertence sem hesitação à diegese. E teríamos assim um romance fechado, concluído. O destino das personagens é revelado, conhecido.


Ação

Aparição não é um romance de ação. É ante sum romance me que a narrativa romanesca se funde com uma espécie de reflexão, ou, se se preferir, funciona ao serviço da problemática metafísica colocada no romance.
Mesmo assim, a ação é bipartida. Há toda uma série de acontecimentos em torno da família Soares (numa aldeia da Beira), outra série de factos envolvendo sobretudo a família Moura (em Évora). Alberto participa de um e de outro ciclo. Mas não será essa coincidência que faz dele o protagonista. O que na realidade lhe confere esse estatuto é o peso que lhe cabe na problemática em questão. Ele é, por assim dizer, o ponto de convergência de todos os aspetos dessa problemática; é ele que constantemente se confronta com todas as outras personagens; as que têm problemas e as que não têm problemas.
Pela sua complexidade e pelo papel que desempenha, é Sofia, em relevo, a segunda personagem, constituindo com Alberto e Carolino um triângulo já clássico. Mas, nos acontecimentos ocorridos em Évora em redor da família Moura, há um fio condutor que desemboca e se centra em Ana.
Assim, podemos considerar dois conjuntos de acontecimentos e personagens, um secundário (Família Soares – Beira), o outro principal (Família Moura – Évora), tendo apenas em comum a personagem Alberto. Podemos também admitir que esse conjunto que constitui a ação principal  é ainda passível de uma bifurcação que leva, por um lado e com mais relevo, a Sofia, por outro e talvez com menos evidência, a Ana.
Tentemos reunir os principais acontecimentos e fatores atinentes a cada um destes grupos.

A – Ação principal (Família Moura – Évora)
Em torno de Sofia:
Primeira sequência de Sofia, feita pelo Dr. Moura a Alberto, à mesa de um café; primeiro encontro de Alberto com Sofia (em casa dela); lições de Latim; conversas de Alberto com Carolino; certo «encontro» metafísico e relações físicas entre Alberto e Sofia; episódio da morte da galinha; relações de Sofia com Carolino; intermitentes relações de Sofia com Alberto; ciúmes de Carolino e louca fascinação de matar Alberto; assassinato de Sofia por Carolino.

Em torno de Ana:
Mal disfarçada angústia metafísica da Ana; sua frustração de mulher impossibilitada de ter filhos; certa humilhação relativamente ao marido, ao seu espírito terra a terra, às suas preocupações de exclusiva ordem prática, à sua exibição de «posse» da mulher; morte de Bailote, deixando órfãos pequenos; morte de Cristina (para quem Ana transferira o seu potencial amor maternal); regresso à «crença», à paz, à serenidade, ao equilíbrio interior, definitivamente assegurados pela «dádiva» do marido: os dois filhos mais novos de Bailote.

B – Ação secundária (Família Soares – Beira)
Reunião e apresentação da família, na casa dos pais, pelas Vindimas; morte do pai; decadência da mãe e seu desinteresse pela vida; partilhas a pedido da mãe; a Alberto cabe o velho casarão da família.

Muitos anos mais tarde, esse casarão povoado de recordações irá ser o verdadeiro laboratório de toda a narração. Neste sentido, podemos considerar que instaura no romance certo tipo de unidade.


Código da Metafísica, Signos da sua representação

Código da Metafísica
É a problemática existencialista que se apresenta neste romance. Não é muito difícil apercebermo-nos dessa problemática:
- Busca do «eu» essencial, apenas pressentido como fugaz «aparição» no «existente»
- O absurdo da morte perante a necessidade da vida
- A obscura certeza de que é no Homem (e não em qualquer Transcendência) que estão as respostas definitivas para a justificação da condição humama em face da vida e da morte
- O homem é um «projeto», o que faz de si próprio
- O homem é um ser perfeitamente livre
- Todo o homem é responsável por toda a Humanidade
- Impossibilidade de identificar os «outros» como seres em si próprios

domingo, 12 de maio de 2013

O Gebo e a Sombra - Trailer

Uma Abelha na Chuva (1972) #1

RETRATO A LA MINUTA - VIRGILIO FERREIRA (1996)

Narrador

«Assim, o narrador é classificado como heterodiegético, se não é co-referencial com nenhuma das personagens da diegese, se não participa, por conseguinte, na história narrada. Como exemplos desse tipo de narradores, mencionaremos o narrador de Tom Jones, de Fielding, de L'éducation sentimentale, de Flaubert, ou de O primo Basílio, de Eça de Queirós. O narrador heterodiegético pode manifestar-se como um "eu" explícito ou como um narrador apagado, de "grau zero", fundido com o autor textual.
Se, pelo contrário, o narrador é co-referencial com uma das personagens da diegese, participando na história narrada, classificar-se-á como homodiegético. O narrador pode ser co-referencial com o protagonista do romance, como acontece, por exemplo, n' A relíquia, de Eça de Queirós, no Jogo da cabra cega, de José Cardoso Pires, ou na Aparição, de Vergílio Ferreira.»

Vítor Manuel de Aguiar e Silva, Teoria da Literatura

Tempo da diegese

«O tempo da diegese comporta um tempo objectivo, um tempo "público", delimitado e caracterizado por indicadores estritamente cronológicos atinentes ao calendário do ano civil - anos, meses, sem esquecer em certos casos as horas -, por informações relacionadas ainda com este calendário, mas apresentando sobretudo um significado cósmico - ritmo das estações, ritmo dos dias e das noites -, por dados concernentes a uma determinada época histórica, etc.»

Dois exemplos:

«Pelas cinco horas de uma tarde invernosa de outubro, certo viajante entrou em Corgos, a pé, depois da árdua jornada que o trouxera da aldeia de Montouro, por maus caminhos, ao pavimento calcetado e seguro da vila» (Carlos de Oliveira, Uma abelha na chuva)

«Pelas nove da manhã desse dia de Setembro cheguei enfim à estação de Évora» (Vergílio Ferreira, Aparição)

Vítor Manuel de Aguiar e Silva, Teoria da Literatura

Princípio da causalidade

«A admissão ou a rejeição do princípio da causalidade, na vida real como na diegese romanesca, dependem fundamentalmente de uma visão do mundo, isto é, de uma ideologia. Esta problemática é assim analisada pelo narrador de Nítido nulo, romance de Vergílio Ferreira: «O princípio de causalidade. Não existe. Para pessoas não existe. Porque uma causa só é causa quando a gente quer que o seja. Se não quer que o seja, não é causa de nada. E é por isso que um juiz arreia num criminoso. Mas curiosamente, quando o advogado de defesa fala em «atenuantes», já acredita na causalidade. E o juiz também, que o ouve - um outro barco avança na linha do horizonte. Vem no mesmo sentido do primeiro, vão ambos para o norte, que é que haverá para o norte? Mas sem o princípio da causalidade não saberia contar nada. Há coisas que acontecem antes e outras que aconteceram depois; e o simples facto de contar uma antes e dizer que outras aconteceram depois faz entender que as que aconteceram depois vêm na força de sequência das que aconteceram antes. Como se aquilo que aconteceu, pelo facto de ter acontecido, tivesse de acontecer. E não tem. Mas para o sabermos teríamos de voltar atrás, o que não é possível» (Nítido nulo, Lisboa, Portugália Editora, 1971, p. 25).

Vítor Manuel de Aguiar e Silva, Teoria da Literatura