Aparição, de Vergílio Ferreira
Estrutura
Quanto
à primeira parte (aquela a que chamamos preâmbulo), ela é de facto alheia à
história, ou, melhor, está já «de fora» da história. Mas necessariamente alguma
relação mantém com ela; de contrário, seria excrescência inútil, por carência
de função. A verdade é que, logo aí, o discurso pessoal sugere uma narrativa de
1ª pessoa, um narrador homodiegético (que pouco adiante se definirá
autodiegético) e, o que sob certos aspetos terá bastante importância , um
distanciamento de «muitos anos» em relação aos factos que provavelmente irão
ser narrados. O distanciamento é temporal (explicitamente temporal); mas, entre
os dois eus (o que, «nesta sala
vazia», relembra, e o que, «muitos anos» atrás, agiu, pensou, sentiu), podem
ter-se ou não instaurado outras distâncias; ética, afetiva, metafísica…
Sem
analisarmos certos aspetos (que nos parecem de muito interesse, mas que
reservaremos para outro lugar) e limitando-nos neste momento à estrutura da
obra, parece-nos desde já importante chamar a atenção para estas páginas iniciais.
Em síntese, sugere-se: uma narrativa de 1ª pessoa; um (provável) narrador
atormentado por questões metafísicas numa linha de problemática
existencialista; relativamente aos factos relembrados (que serão naturalmente o
assunto da narrativa), um distanciamento temporal de «muitos anos» que poderá,
por um lado, em termos de diegese, ser acompanhado ou não de outros
distanciamentos, e, por outro lado, pode indiciar, em termos de discurso, uma
imagem do eu-narrador prevalecendo sobre a imagem do eu-personagem.
(…)
O narrador termina a história no capítulo 25, à maneira clássica, com um
desfecho abrupto e trágico. Poderia ter ficado por aí. A história tinha o seu
fim, o livro tinha o seu fim. Mas não procedeu deste modo. Na realidade, o
doador da narrativa não quis usar do poder taumatúrgico de que estava
revestido, para fazer desaparecer, categórica e repentinamente, com um simples
ponto final, todo o universo diegético que criara. E assim, por um lado,
fornece informações suplementares e esclarecimentos que se ligam aos factos recentes;
por outro, resume em poucas linhas muitos anos e alguns acontecimentos
relativos à sua família e a si próprio. O epílogo (a existir como tal)
terminaria logicamente no período: «Casei, adoeci, retirei-me do ensino.» Todo
este segmento do discurso pertence sem hesitação à diegese. E teríamos assim um
romance fechado, concluído. O destino das personagens é revelado, conhecido.
Ação
Aparição não é um romance de ação. É ante
sum romance me que a narrativa romanesca se funde com uma espécie de reflexão,
ou, se se preferir, funciona ao serviço da problemática metafísica colocada no
romance.
Mesmo
assim, a ação é bipartida. Há toda uma série de acontecimentos em torno da
família Soares (numa aldeia da Beira), outra série de factos envolvendo
sobretudo a família Moura (em Évora). Alberto participa de um e de outro ciclo.
Mas não será essa coincidência que faz dele o protagonista. O que na realidade
lhe confere esse estatuto é o peso que lhe cabe na problemática em questão. Ele
é, por assim dizer, o ponto de convergência de todos os aspetos dessa
problemática; é ele que constantemente se confronta com todas as outras
personagens; as que têm problemas e as que não têm problemas.
Pela
sua complexidade e pelo papel que desempenha, é Sofia, em relevo, a segunda
personagem, constituindo com Alberto e Carolino um triângulo já clássico. Mas,
nos acontecimentos ocorridos em Évora em redor da família Moura, há um fio condutor
que desemboca e se centra em Ana.
Assim,
podemos considerar dois conjuntos de acontecimentos e personagens, um secundário
(Família Soares – Beira), o outro principal (Família Moura – Évora), tendo
apenas em comum a personagem Alberto. Podemos também admitir que esse conjunto
que constitui a ação principal é ainda
passível de uma bifurcação que leva, por um lado e com mais relevo, a Sofia,
por outro e talvez com menos evidência, a Ana.
Tentemos
reunir os principais acontecimentos e fatores atinentes a cada um destes
grupos.
A
– Ação principal (Família Moura – Évora)
Em
torno de Sofia:
Primeira
sequência de Sofia, feita pelo Dr. Moura a Alberto, à mesa de um café; primeiro
encontro de Alberto com Sofia (em casa dela); lições de Latim; conversas de
Alberto com Carolino; certo «encontro» metafísico e relações físicas entre
Alberto e Sofia; episódio da morte da galinha; relações de Sofia com Carolino;
intermitentes relações de Sofia com Alberto; ciúmes de Carolino e louca
fascinação de matar Alberto; assassinato de Sofia por Carolino.
Em
torno de Ana:
Mal
disfarçada angústia metafísica da Ana; sua frustração de mulher impossibilitada
de ter filhos; certa humilhação relativamente ao marido, ao seu espírito terra
a terra, às suas preocupações de exclusiva ordem prática, à sua exibição de
«posse» da mulher; morte de Bailote, deixando órfãos pequenos; morte de
Cristina (para quem Ana transferira o seu potencial amor maternal); regresso à «crença»,
à paz, à serenidade, ao equilíbrio interior, definitivamente assegurados pela
«dádiva» do marido: os dois filhos mais novos de Bailote.
B
– Ação secundária (Família Soares – Beira)
Reunião
e apresentação da família, na casa dos pais, pelas Vindimas; morte do pai; decadência
da mãe e seu desinteresse pela vida; partilhas a pedido da mãe; a Alberto cabe
o velho casarão da família.
Muitos
anos mais tarde, esse casarão povoado de recordações irá ser o verdadeiro
laboratório de toda a narração. Neste sentido, podemos considerar que instaura
no romance certo tipo de unidade.
Código da Metafísica, Signos da sua representação
Código da Metafísica
É a problemática existencialista
que se apresenta neste romance. Não é muito difícil apercebermo-nos dessa
problemática:
- Busca do «eu» essencial, apenas
pressentido como fugaz «aparição» no «existente»
- O absurdo da morte perante a
necessidade da vida
- A obscura certeza de que é no
Homem (e não em qualquer Transcendência) que estão as respostas definitivas
para a justificação da condição humama em face da vida e da morte
- O homem é um «projeto», o que
faz de si próprio
- O homem é um ser perfeitamente
livre
- Todo o homem é responsável por
toda a Humanidade
- Impossibilidade de identificar
os «outros» como seres em si próprios