A focalização autodiegética comporta ainda algumas modulações importantes. Entre o eu narrador e o eu narrado pode cavar-se uma distância temporal mais ou menos longa que determina entre os dois eus distâncias de outro teor: uma distância ideológica, uma distância psicológica, uma distância ética... Amadurecido ou envelhecido,o eu narrador, ao rememorar eventos do eu narrado, pode assim assumir uma atitude irónica e judicativa ou uma atitude solidária perante o eu narrado, pois que o fluir do tempo esgarça a identidade entre o eu narrador e o eu narrado, instaurando entre ambos uma relação ambígua e complexa de continuidade e de ruptura.
É na velhice que o narrador de Dom Casmurro relembra a sua infância e a sua adolescência, os seus amores e a sua tragédia com Capitú, resultando naturalmente daí a não coincidência psicológica e ideológica entre o eu-instância narrativa e o eu-agente diegético. É este desvio, apreendido e pensado dentro do âmbito de uma certa unidade fundamental da pessoa humana, que o narrador de Aparição regista explicitamente, ao confessar: «Conto tudo, como disse, à distância de alguns anos. Neste vasto casarão, tão vivo um dia e agora deserto, o outrora tem uma presença alarmante e tudo quanto aconteceu emerge dessa vaga das eras com uma estranha face intocável e solitária. Mas os elos de ligação entre os factos que narro é como se se diluíssem num fumo de neblina e ficassem só audíveis, como gritos, que todavia se respondem na unidade do que sou, os ecos angustiantes desses factos em si - padrões de uma viagem que já mal sei».
Vítor Manuel de Aguiar e Silva, Teoria da Literatura
Sem comentários:
Enviar um comentário